domingo, 17 de julho de 2011

Déficit habitacional atinge 70 mil em Natal e 300 mil no RN

Madrugada de lua cheia em Natal (RN). O latir dos cães ao longe contrasta com o barulho das corujas, à espreita no morro próximo. De repente, os caminhões. Lonas, sacolas de plástico, bandeiras vermelhas. Gente. Cada família traz seus pertences, seus papelões, seus pedaços de madeira. Os móveis e eletrônicos também estão lá. Televisão, rádio, ventilador. Ao raiar do dia, é hora de arrumar as coisas, tirar o lixo que havia se espalhado pelo terreno e preparar as casas simples, de taipa mesmo, para organizar as ruas e vielas do novo acampamento. Também é hora de lembrar que, junto com a bagagem, vem também o sonho de viver melhores momentos. Eis o cenário do primeiro dia da Ocupação Anatália de Souza Alves, no Guarapes, Zona Oeste da capital, um ano atrás, em 9 de julho de 2010.

Pertencente à Prefeitura do Natal, o terreno ocupado tem um hectare. Na época da invasão, um posseiro que mora próximo tentou, em vão, reaver a terra a que chamava de sua. O nome daaglomeração habitacional é uma homenagem à potiguar sequestrada nos anos de chumbo da Ditadura Militar, levada ao DOI-Codi do IV Exército, no Recife (PE), e também ao Departamento de Ordem Política e Social, o temido Dops.

A história conta que, por mais de um mês Anatália foi torturada e, por fim, assassinada (1976). Ela representa a luta pela liberdade e pelo socialismo, a mesma bandeira defendida pelo Movimento de Lutas nos Bairros e Favelas (MLB), presente em 14 cidades brasileiras e que atua em Natal há 8 anos, coordenando a ocupação de terrenos e estruturas de órgãos públicos e privados que estejam sem uso, como a do Guarapes daquela madrugada fria e enluarada. Um ano depois, eles continuam lá, querendo uma casa para morar.

Na cidade-sede da Copa 2014, que dispõe de 26 mil leitos para os turistas e que construirá, por iniciativa privada, mais seis hotéis até o mundial, 70 mil natalenses não têm uma casa para morar e vivem em condições insalubres, sem acesso a esgoto, água encanada, luz elétrica, com riscos de desabamento ou em palafitas. Deste total, 95,9% são pessoas que vivem com zero a três salários mínimos.

Não há nenhuma casa destinada a esse público construída na capital, dentro do mais bem-sucedido programa do governo federal, o Minha Casa Minha Vida. Ao mesmo tempo, Natal tem 24 mil imóveis fechados, um terço dos imóveis de Ponta Negra estão desocupados, a Zona Norte concentra metade da população e regiões como Nova Parnamirim crescem assustadoramente, mas áreas como Felipe Camarão, Planalto e Guarapes dispõem de muitos terrenos.

O déficit habitacional no Estado do Rio Grande do Norte também é grande: chega a 100 mil famílias, uma média de 300 mil pessoas. No Brasil, o número de famílias sem teto chega a 5,8 milhões. Os dados são, respectivamente, da Secretaria Municipal de Habitação, Regularização Fundiária e Projetos Estruturantes (Seharpe), Companhia Estadual de Habitação e Desenvolvimento Urbano (Cehab) e do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Origem

O coordenador estadual doMLB, Wellington Felipe, disse que o movimento surgiu em Pernambuco em 1999 e chegou a Natal em 2003. "No ano seguinte fizemos a primeira ocupação, no que hoje é o conjunto habitacional Leningrado, no Planalto. Foi a nossa primeira grande vitória aqui no Estado. Hoje são 444 casas no local. Pessoas que antes viviam em barracos e hoje vivem em casas de alvenaria, ruas calçadas, água servida e energia. Hoje o conjunto também dispõe de um Centro Municipal de Educação Infantil (CMEI). Agora, brigamos por uma linha de ônibus regular".

Nos sete anos de atuação do movimento no Estado, foram 1.300 casas conquistadas junto a programas habitacionais da prefeitura, do Governo do Estado e do Governo Federal. Depois do Leningrado, no Planalto, foi a vez dos conjuntos Emanoel Bezerra (280 casas) e Santa Clara (190), no mesmo bairro, e por último o Conjunto Djalma Maranhão (130), em Jardim Progresso, Zona Norte da capital. "Além disso, tivemos a ocupação Luiz Gonzaga, em Mãe Luíza, cuja população de 50 famílias foi removidapara o Planalto em 2009", acrescenta Wellington.

O grupo também presta assistência em vilas de moradores pobres e comunidades carentes, como nas chamadas favelas do Detran, Vilma Maia e Pião. Hoje o grupo trabalha para remover duas favelas: Camboim (Bom Pastor) e Mosquito (Quintas), e montou ocupações em terrenos públicos como o 8 de Outubro e o Anatália, nos Guarapes. Nos 13 núcleos do MLB espalhados pela capital do Rio Grande do Norte, vivem cerca de 1.800 famílias.

Programa chega a apenas 465 famílias

Os militantes do movimento sem-teto contam com o Programa de Erradicação de Favelas do município de Natal, que atendeu 465 famílias com recursos oriundos do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). A contrapartida municipal foi de R$ 599.266 e o valor total das obras chegou a R$ 10,2 milhões. Foram beneficiadas as comunidades Alagamar, Peão, Via Sul, 8 de Outubro, Luiz Gonzaga (Sopapo) e Detran. "Ainda assim, o grande problema, em Natal, é que o território do município é muito pequeno e a cidade tem muitas dunas, Zonas de Proteção Ambiental (ZPA's), o Rio Potengi e o mar, ou seja, estas também são limitações", explicou o titular da Seharpe, Paulo Roberto Medeiros Júnior.

O Estado também tem um programa de habitação popular. Nos oito anos dos governos Wilma de Faria e Iberê Ferreira, foram construídas 25 mil casas. A gestão Rosalba Ciarlini prevê construir, até o final do primeiro ano de governo e em todo o Estado, 3.300 residências dentro do Programa de Subsídio à Habitação. "Alémdisso, construímos 202 casas e 108 apartamentos dentro do projeto de urbanização da avenida Capitão-mor Gouveia, e 102 casas no Planalto", disse João Felipe de Medeiros, diretor-presidente da Cehab. "Não podemos incentivar a ocupação de terrenos e prédios públicos, mas se eles existem, é porque o problema existe. Não podemos negar isso".

Esforços governamentais parecem pequenos diante da missão hercúlea de dar casa para todo mundo que precisa. "Ainda é pouco, porque falta uma política de habitação permanente. Natal não dispõe hoje, por exemplo, de um banco de dados sobre terras, quantidade de grileiros e posseiros", afirmou Wellington, do MLB. As autoridades reconhecem a falta de ordenamento habitacional. "Ainda estamos trabalhando na elaboração do Plano Local de Habitação de Interesse Social (PLHIS), que deverá ficar pronto até o final do ano e que vai nortear as políticas de habitação", explicou Paulo Roberto, da Seharpe. "Teremos nosso Plano Estadual de Habitação, que aliás, deveria estar pronto desde 2009", destaca João Felipe, da Cehab.

As dificuldades e as regras da ocupação Anatália

Maria Isabel Ferreira Pereira, 58, é uma das pessoas presentes naquela madrugada fria de 9 de julho, quando a ocupação Anatália se constitui em um acampamento no terreno da prefeitura. Nascida em Jandaíra, distante 116km de Natal, há 20 anos ela veio tentar a sorte na capital dos potiguares.

"Queria que Jesus me ajudasse a conseguir a minha casa. Aqui é ruim quando chove, tem goteiras por toda parte. Tenho fé que tudo vai dar certo", afirma ela, que trabalhou como doméstica, teve sete filhos, casou-se, ficou viúva e casou novamente. Seu esforço é um alento à busca por melhores condições de vida. Quando a reportagem de O Poti/Diário de Natal esteve na Ocupação Anatália de Souza Alves, Isabel carregou nada menos do que dez latas d'água da cisterna para sua casa.

A residência da dona de casa tem quatro cômodos, todos pequenos: sala, quarto, cozinha e banheiro. As paredes são de taipa, e o chão, de terra batida. Dois dos sete filhos moram com ela. Os outros constituíram famílias e residem em Nova Parnamirim, Quintas, na Avenida 6 e em Parnamirim. Com a ajuda dos filhos, que trabalham com bicos, conseguiu comprar uma televisão. É o utensílio mais novo da casa de Maria Isabel. Na cozinha, por exemplo, são velhas as panelas de alumínio que aguardam o preparo do arroz e feijão de cada dia.

Ao todo, 240 famílias vivem na Ocupação Anatália de Souza Alves, uma das 72 comunidades natalenses cujos moradores convivem com condições precárias. Costureiras, camelôs, empregadas domésticas, autônomos. A maior parte das pessoas que vivem na no local não tem condições de comprar uma casa, mesmo parcelando em vários meses. Com ajuda do MLB, os moradores se organizaram. Há água e luz instaladas, usurpadas da rede pública. Semanalmente são feitas reuniões deliberativas, em uma das ruas do assentamento, e existem regras claras para continuar participando da ocupação, o que credencia o morador a ter mais facilidade para ganhar residências de alvenaria, oriundas de programas habitacionais do município, Estado ou União.

"Aqui é proibido beber, portar armas de fogo, usar drogas lícitas e ilícitas, brigar ou espancar as pessoas. Isso é respeitado à risca. Todos têm consciência de que estamos numa guerra e temos que estar prontos para a batalha. Estamos todos sendo formados nessa batalha", afirma Wellington Felipe. "Infelizmente quando conseguimos tornar a ocupação um conjunto habitacional, a realidade é outra. No Leningrado, por exemplo, enquanto era ocupação, não havia sequer um assalto. Hoje, transformado em conjunto, apenas esse ano duas pessoas foram assassinadas. Infelizmente perdemos o controle", afirma outro dirigente do grupo, o coordenador municipal do MLB Marcos Antônio Ribeiro.

Alguns membros da coordenação estadual, composta por 16 membros, é militante do Partido Comunista Revolucionário (PCR). Os 12 diretores municipais também são. Como em qualquer movimento social, o MLB conta com sede própria em Cidade da Esperança, e dispõe de advogado, contador, computadores. "O movimento se mantém com doações daqueles que podem pagar", diz Marcos Antônio.

O dinheiro serve para confeccionar cartazes, fazer faixas, carros de som que servirão para as manifestações, enfim, para dar o suporte necessário nas manifestações de rua. A ordem interna na ocupação é mantida pelos cinco coordenadores locais. "Somos organizados e todos aqui querem um objetivo comum. Podemos ter cara de favela e jeito de favela. Mas não somos favela", conclui Wellington.

Ocupações do MLB já conquistaram 6 conjuntos habitacionais:

2007
Emanoel Bezerra (Planalto)
280 unidades

2008
Leningrado (Planalto)
444 unidades

2009
Salta Clara (Planalto)
190 unidades

2010
Praiamar (Bom Pastor)
205 unidades

2011
Nova Esperança (Cidade da Esperança)
117 unidades

2011
Djalma Maranhão (Jardim Progresso)
130 unidades

Fonte: MLB

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