O STF deve julgar neste semestre a descriminalização do porte de drogas para consumo próprio |
O
Brasil pode se igualar aos demais países da América do Sul que
descriminalizaram o porte de drogas hoje ilícitas e passar a ser tolerante com
o consumo e com o cultivo para uso próprio. A medida depende do Supremo
Tribunal Federal (STF) que deve julgar, neste mês, ação questionando a
inconstitucionalidade da proibição. A Defensoria Pública do Estado de São Paulo
recorreu à Corte, alegando que o porte de drogas, tipificado no Artigo 28 da
Lei 11.343, de 2006, não pode ser considerado crime, por não prejudicar
terceiros. O relator é o ministro Gilmar Mendes, que finalizou o voto e deve
colocar o tema em votação ainda este mês.
Para
especialistas em segurança pública, direitos humanos e drogas, o STF tem a
chance de colocar o Brasil no mesmo patamar de outros países da região e dar um
passo importante para viabilizar o acesso de dependentes químicos ao tratamento
de saúde, além de pôr fim à estigmatização do usuário como criminoso.
“A
lei de drogas manteve a posse de drogas como crime, mas não estabeleceu a pena
de prisão – o que foi um avanço. O entendimento que se tem é que isso [a
proibição] é inconstitucional, diante dos princípios da liberdade, da
privacidade, no sentido que uma pessoa não pode ser constrangida pelo Estado,
sob pena de sanção, por uma ação que, caso faça mal, só faz mal a ela”,
explicou a coordenadora do Grupo de Pesquisas em Política de Drogas da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Luciana Boiteux.
O
diretor para a América Latina da Open Society Foundation, organização não governamental
que defende direitos humanos e governança democrática, Pedro Abramovay, diz que
em nenhum país onde o porte de drogas foi flexibilizado houve aumento do
consumo.
“O
Brasil está atrasado e se descriminalizar vai se igualar a dezenas de países que
já passaram por esse processo. Todos os países que descriminalizaram o consumo,
que falaram que ter o porte para o consumo pessoal não é mais crime, não viram
o consumo crescer. Então, esse medo que as pessoas têm, de haver aumento, é
infundado com os dados da realidade”, destaca.
Ele
acredita que a medida pode fazer com que dependentes tenham acesso facilitado à
saúde. “Hoje, um médico que trata uma pessoa que usa crack, lida com um
criminoso, tem a polícia no meio, o que torna a abordagem mais e mais difícil”,
destacou Abramovay, que já foi secretário nacional de Justiça.
Traficante
x usuário
Com
a decisão do STF, também pode sair das mãos da polícia e do próprio Judiciário
a diferenciação entre quem é traficante e quem é usuário, que tem levantado
críticas de discriminação e violação de direitos humanos nas prisões. A lei
atual, de 2006, não define, por exemplo, quantidades específicas de porte em
cada caso, como em outros países, e deixa para o juiz decidir, com base no
flagrante e em “circunstâncias sociais e pessoais”. “Em outras palavras: quem é
pobre é traficante, quem é rico é usuário”, critica Abramovay.
Segundo
ele, o STF deve recomendar, na sentença, que sejam estabelecidos critérios para
a caracterização de usuários, por órgãos técnicos como a Agência Nacional de
Vigilância Sanitária (Anvisa). “O Supremo pode dizer que, para garantir que a
Constituição seja respeitada, sem discriminação, são necessários critérios.
Esse não é um tema menor, a falta de indefinição leva ao encarceramento. Estamos
falando de um a cada três presos no país”, destacou Abramovay.
Em
evento no Rio de Janeiro, na semana passada, o ministro da Justiça, José
Eduardo Cardozo, reconheceu que as “lacunas legais” para diferenciar
traficantes e usuário alimenta o ciclo de violência e superlota o sistema
prisional. Segundo ele, o tráfico é o segundo tipo de crime que mais coloca
pessoas atrás das grades, depois de crimes contra o patrimônio. No caso de
mulheres, o tráfico aparece em primeiro lugar na lista.
“Sabemos
que temos uma cultura, que não me parece adequada, de querer forçar a barra de
tudo quanto é traficante para poder criminalizar. Temos muita gente que é
usuária – que deveria receber tratamento de saúde – entrando nas unidades
prisionais em contato com organizações criminosas: ou seja, entra usuário e sai
membro do tráfico”, lamentou o ministro.
A
professora da UFRJ Luciana Boiteux aposta na regulação – da produção à venda
das substâncias – como solução para enfrentar a violência e os homicídios no
país relacionados ao combate ao tráfico.
Outro
lado
Contrário
à descriminalização do porte de drogas para consumo próprio, o deputado federal
Osmar Terra (PMDB-RS) acredita que a medida é o primeiro passo para a
legalização das drogas o que, de acordo com ele, seria ruim para a sociedade.
“Se
descriminalizar o uso, acabou, legalizou a droga. Se não for crime usar [a
droga], as pessoas vão andar com droga à vontade. Vão levar para o colégio,
para a praça, distribuir para os amigos. E como é que pode não ser crime
comprar, mas ser crime vender? Como se resolve esse paradoxo? Isso vai acabar
legalizando a venda. Os traficantes vão [fingir] ser todos usuários. Isso vai
aumentar a circulação da droga. Liberar a droga só agrava o problema, não
melhora”, disse Terra que preside a
Subcomissão de Políticas Públicas sobre Drogas da Câmara dos Deputados.
Ele
discorda da tese de que o uso de drogas é uma liberdade do indivíduo, que só
afeta a ele. “A dependência química é uma doença incurável. A pessoa vai levar
aquilo para o resto da vida. Isso pode reduzir sua capacidade laborativa e de
cuidar da família. Muitas vezes, [o usuário] sobrecarrega a família, porque a
maioria é desempregada e não consegue cuidar da família. Ele sobrecarrega seus
pais, irmãos, que têm que cuidar dele, tem que arrumar dinheiro para manter,
tem que trabalhar mais. A liberdade de ele usar droga é a escravidão da
família”, afirma.
O
deputado relaciona ainda o uso de drogas, lícitas e ilícitas, ao aumento da
violência no país. “Nossa epidemia da violência é filha da epidemia das drogas.
O Brasil é o país em que mais se mata gente no mundo. Mata mais em homicídios,
em acidentes de trânsito. Se liberar, vai aumentar tudo isso. Qual é a maior
causa de violência doméstica? É o álcool, porque é uma droga lícita. Não é
crime comprar álcool. A violência doméstica vai aumentar muito em função da circulação
das drogas ilícitas”, diz.
A
opinião é compartilhada pelo empresário Luiz Fernando Oderich, que fundou a
organização não governamental Brasil Sem Grades, que pede mais segurança e
defende leis mais duras para combater a violência. Max, filho de Oderich, foi
assassinado há 13 anos durante uma tentativa de assalto.
Segundo
ele, o usuário não deve ser tratado como criminoso. Entretanto, muitas vezes,
ele se envolve em outros crimes por causa do uso de drogas. “Existe uma relação
entre um comportamento não social e o consumo de drogas. Alguns, de uma maneira
menor, e outros, de uma maneira maior. É uma coisa que não faz bem”, disse o
empresário.
O
psiquiatra Osvaldo Saide, da Associação Brasileira de Alcoolismo e Drogas
(Abrad), diz que o ideal é não tratar o usuário como criminoso, mas
encaminhá-lo para tratamento. No entanto, segundo ele, é preciso que a
legislação deixe claro o que fazer em casos de pessoas que cometam crimes sob
efeito de drogas e em casos de venda de drogas pelos usuários para sustentar
seu próprio vício.
Para
Saide, seria necessário criar alternativas ao usuário como receber a pena pelo
outro crime cometido ou se submeter a tratamento compulsório. “A Justiça pode
pressionar a pessoa para o tratamento em uma situação em que ela não tem a
noção da gravidade do seu problema, até porque a dependência química leva a uma
falta de noção da gravidade do próprio problema. Às vezes, uma pessoa com
profissão fica imersa, por exemplo, no crack”, disse.
A
presidenta da Associação Brasileira de Estudos de Álcool e outras Drogas
(Abead), a psiquiatra Ana Cecília Marques, acredita que a descriminalização do
uso precisa ser discutida pela sociedade, mas discorda que isso seja feito por
um julgamento do STF.
“É
preciso que haja uma lei que defina claramente os casos específicos, como se
ele é um usuário eventual, se tem uma dependência. Sou a favor de
descriminalizar, mas acho que precisa ter todo esse rigor, que não é algo que
existe nas nossas leis de drogas. Elas não são claras, deixam várias lacunas. E
no país faltam políticas para as drogas. Sou a favor, mas temo por esse
processo de descriminalização”, disse.
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